Caderno de tanto

Quinto escrito

(Este é o quinto escrito do caderno. Escolhi começar por esse não por nada, mas porque eu não quero compartir o que está em qualquer dos quatro primeiros.)

É tudo muito. Isso de sentir coisas. To sentindo tudo muito. Tem uma raiva, existe uma raiva, mas eu não quero dar espaço pra isso, mas veja, eu acho que fingir que não existe não é o caminho, pelo contrário, porque aí é que você pára de prestar atenção. Eu quero olhar nos olhos de tudo de que tenho medo, de tudo aquilo o que acho que me possa fazer mal. E isso inclui olhar nos olhos, nas ruas, das pessoas que me encaram. Não se trata de coragem, mas também tem um pouco disso. É revigorante fazer coisas perigosas em nome das nossas convicções. Não pela adrenalina, essa coisa eu nunca tive. Não é bem coragem, não é adrenalina, e eu nem sei que nome tem isso que eu faço. Isso de encarar de volta com cara de “tenta a sorte”. Essas coisas de encarar também têm um tanto de raiva, então quando eu encaro o babaca na rua também estou encarando meu medo e minha raiva. E eu tenho muita raiva, não posso me dar o luxo de deixar que ela se manifeste livremente. Rédea curta segurando o bicho. Sabe o que também tem no meu olhar? Esse que encara o medo e a raiva? Tem aquela minha incontida vaidade. Um pouco dessa vaidade vem da minha validação a mim mesma de saber que eu consigo olhar nos olhos disso tudo e encarar, é uma conquista, e conquistas alimentam vaidades. Mas sabe do quê mais? Me encaram mais justamente quando eu to mais bonita. Mais gostosa. Esse olhar de raiva e preconceito e curiosidade eu sei que também guarda fascinação. Porque puts. Mas sabe o que mais? Livre. Como você talvez jamais seja. A pé. Sozinha. Encarando de volta. Foda. Pois é, bonitão. Segue deu rumo. Porque além de gostosa e livre eu tenho aqui dentro uma raiva que você não vai querer descobrir. Falo esse monte de abobrinha sentada no sofá da sala. Incenso aceso, trilha de Kaze Tachinu, vinho. Hoje eu corri 5300km entre as 6h15 e as 7h. Quinta eu quase levei a dentista no Bar do Dionísio. Ontem tive um bar tão gostoso com fulane, sicrane e beltrane. De todas as coisas das culturas humanas que eu tenho profunda dificuldade em entender o grande tema que mais me intriga são os relacionamentos amorosos. Os ritos, as dinâmicas, a normalização da monogamia. Nada faz sentido pra mim. E olha que eu tive muitos relacionamentos os mais padrão que se possa imaginar. Isso eu não quero mais, mas ando com muita vontade de dar e ganhar uns beijos. Que acabe aí. Não quero deite, e pelo amor das deusas não quero romance. Mas uns beijos. Por que ninguém me canta? Por que eu não tomo iniciativas? Como funciona essa brincadeira neste lugar nesta idade neste tempo? Que bela antropóloga que parece o Evans-Pritchard entre os Azande, o Malinowski entre os trobriandeses, o Gluckman entre os Zulu, uma voyeur olhando de fora seu próprio mundo, sem sequer saber se tem um mundo, se pertence a um mundo. Vou acender outro incenso e pegar mais vinho, mas não sei mais o que dizer. Colorín, colorado, este cuento se ha acabado. Já estou cheia de me sentir vazia, meu corpo é quente e estou sentindo frio.