Caderno de tanto

Décimo terceiro escrito

Em 2004 eu me envolvi com a música essa dos Titãs que dizia que não existe o amor, apenas provas de amor. É do disco que eles lançaram naquele ano, o “como estão vocês?”. Um disco bastante irrelevante e esquecido na história da banda, mas aos 14 anos não se tem essa perspectiva. Comprei o CD e memorizei quase inteiro. Incluindo “provas de amor”, que acabaria tocando em novela e nem por isso seria um êxito fonográfico. Mas essa música me pegou na época do meu primeiro namoro, com a primeira pessoa que beijei. E isso deve dizer uma coisa ou outra sobre mim. Identificar-me aos 14 anos, vivendo meu primeiro romance, com uma letra que diz “não existe o amor, apenas provas de amor” diz alguma coisa. Não precisa ir muito longe pra lembrar que eu não quis estar naquele namoro por mais do que uns meses, e que ele durou dezenove meses, e que o término pra mim aos 15 anos foi um estranho alívio dolorido. Como não precisa ir longe pra lembrar que depois, com a segunda pessoa, eu vivi tudo aquilo que se espera sobre o amor romântico, e sobre o que pode ser o amor entre duas pessoas, até o último segundo dos sessenta e sete meses que aquele romance durou, ainda que obviamente com nuances. Hoje me soa absurda a ideia de que não exista o amor, mas eu entendo o que o Paulo Miklos quis dizer. Não vou concordar com o postulado, mas tenho dúvidas de que exista como queremos crer que existe esse amor romântico. Parece-me uma categoria que se propõe a naturalizar comportamentos ditados por regras e convenções como se essas regras e convenções fossem a consequência natural de um sentimento mágico ou divino ou mágico e divino que naturalmente nos conduz a comportamentos e práticas. Vi com a segunda namorada no cinema Ensaio sobre a cegueira. Não li o livro. Uma hora, no filme, o protagonista fode em pé, apoiada numa mesa, uma garota jovem que queria dar pra ele fazia horas. Minha então namorada ficou muito incomodada com essa cena. Na minha casa comentou que não entendeu. Respondi que acho que a ideia era mostrar que naquele ponto todas as convenções sociais já não se aplicavam. Espantada, de olhos arregalados, ela me retrucou dizendo que não era convenção social, mas sim o amor! Aos 21 anos não tive coragem ou disposição pra argumentar que não há relação natural entre amor e monogamia, que o personagem não amava menos a esposa por isso. Só concordei com ela. Comportamentos, dinâmicas, regras, ritos. Tudo o que é ancorado nas formas de amor – romântico, fraternal, materno, sei lá – nada disso está dado, nada disso é natural. A legitimação de práticas sociais pela mística do amor me parece desonesta e cruel. E eu me recuso a fazer parte disso. Eu sei o amor que sinto. Eu sei o que faço a respeito do amor que sinto. Não existem tipos de amor – existe o o amor e a forma como eu lido com o que sinto por cada pessoa que amo. Bom, acho que começou a sair alguma coisa. Não sei que horas são, umas oito e meia talvez, do sábado de feriadão. Gostei desse incenso verde. Tomei duas latinhas. Amanhã quero ver esse filme chinês no Cine Passeio¹. A ver.

¹Não vi.